
Felipe Moreno é autor e professor. Coordena o Projeto Letras Criativas destinado ao ensino e à criação de roteiros audiovisuais.
Personagem Patrão
Vamos começar agora a comentar sobre os tipos de personalidade baseados no Eneagrama, estudo da filosofia Sufi e da psicologia transpessoal.
Vamos tomar cada tipo de padrão de caráter como uma forma de compreender sua forma de responder a seu próprio narcisismo assim como em relação ao mundo externo, ao grupo (social-ismo), para usar os termos desenvolvidos por W. Bion (um dos mais importantes psicanalistas do século passado).
Dessa forma, interessa-nos falar de como os impulsos de vida (Eros) se mobilizam em cada tipo de personalidade aqui por nós estudado, sem nos esquecer de como o lado contrário se caracteriza nos tipos, isto é, como o imobilismo se verifica em cada um dos padrões de caráter, geralmente se constituindo numa visão biológica-constitucional pelo aparecimento de uma repetição de comportamentos (neuroses, vícios, tendências mentais, etc.).
Entretanto, como cada um de nós não nasce de geração espontânea, recebemos as influências do mundo externo desde quando chegamos ao mundo material, dessa forma, também vamos procurar tecer as relações dos tipos de personalidade com as pessoas e o ambiente, quais as tendências de comportamento e os estados mentais de cada tipo diante do mundo externo.
Um detalhe importante a ser reflexionado: para apurar os sentidos visando compreender profundamente (de modo mais espiritual até) as formas de pensar, de sentir e de agir dos tipos, é necessário usarmos a nossa capacidade de observação, tanto em relação a nós propriamente, quanto às pessoas com as quais nos defrontamos no dia-a-dia, e, até mesmo, com as personagens que vemos desfilar nas novelas, filmes e seriados.
O poder de observação aliado à intuição é que determina uma vivência profunda sobre os tipos, isto, claro, depois de conhecer aspectos e características de cada um deles, o que passamos agora a fazê-lo.
Aqui, neste texto, escolhemos falar sobre o tipo 8 do Eneagrama, conhecido como “Patrão”. Patrão, porque é briguento, justiceiro, exagerado, protetor, animal sem dono, chefe, líder natural e mestre em soluções. Faz parte de sua natureza ser instintivo, agir agressivamente, usar sua voz de comando e senso forte de controle.
Se fôssemos avaliar a questão dramática do Patrão, poderíamos dizer que ele se mostra dessa forma ostensiva e que age de acordo com a sua verdade, porque, no fundo, luta para ser amado. O seu “eu” tem como dilema interno o hábito fundamental de defesa, isto é, a sua defesa é ir contra os outros, mas, mesmo brigando, ele permanece ligado ao amor e a aprovação alheia.
Importante ressaltar que pelo fato de ir contra os outros, ele mostra uma contradição aparente, como o fato de “brigar para ser amado”. Obviamente que o senso comum não vê dessa forma.
Em princípio, ninguém que receba a agressividade de um Patrão irá pensar que ele deseja ser amado, sobretudo da forma que escolhe para isto. Contudo, psicanaliticamente, isto pode ser explicado a partir dos impulsos de vida e de morte (de acordo com Freud): na medida em que um tipo de personalidade como o Patrão mobiliza intensamente seus instintos para o mundo externo, buscando confronto e rivalidade, ele desestabiliza o seu mundo interno (narcisismo), dessa forma desequilibrando os dois campos dos quais o Ego é regulador: o mundo interior e o mundo exterior.
Desse modo, essa “luta por ser amado”, íntima e aparentemente sem relação com a sua agressividade patente, é que vem à tona. Age compulsivamente e de forma maníaca (este termo sempre que utilizado deve ser compreendido do ponto de vista psicanalítico) de acordo com seus impulsos de vida, que tendem á repetição sistemática para conservar a sua existência diante dos impulsos contrários, que tendem à inação, à indiferenciação da individualidade, ao imobilismo (morte).
Já se disse que morremos desde que nascemos, e isto se comprova através do estudo celular e do estudo do funcionamento mental. O conflito entre impulsos de vida e de morte mostram exatamente esse processo no Patrão.
A história de cada um de nós é formada por uma ação interior (o nosso drama íntimo) que, projetado às pessoas, torna as situações vividas muito mais interessantes e dolorosas. As histórias de ficção também se fazem assim, com drama, e drama se estabelece com um problema que traga ao personagem o famoso conflito, que fornece às histórias o motor do interesse do espectador.
No caso do tipo do Patrão, uma célula dramática interessante para compreender o conflito que se poderia se instalar nesse padrão de comportamento seria pensar que “alguém do tipo Patrão briga com outra personagem porque quer que a verdade (sua, é claro) e a justiça (idem) se estabeleçam”. Temas como poder, luta, justiça, tudo ou nada, podem cair como a uma luva para servir ao tipo mencionado.
Façamos uma correlação de uma estrutura narrativa viável para compreender a trajetória de um tipo de personalidade como este: imagine um estado atual, o início de uma história cujo protagonista é o Patrão.
Esse personagem, por tendência adquirida de seu tipo de caráter, já é propenso ou disposto à luta, de forma que uma situação desestabilizadora seria o encontro de algum motivo ou posição a defender, estabelecendo-se, assim, uma luta ou estado de conflito ou tensão detonado a partir de uma reação tempestuosa que fosse na direção do senso de controle que rege o comportamento desse tipo de personalidade. E um ajuste ou desfecho final para uma narrativa dentro desse padrão seria o estabelecimento final da justiça por meio de uma verdade unilateral. Sim, porque ou o tipo Patrão faz valer a sua verdade, ou ele a aceita de outra forma – e sendo assim, seguramente, alguma coisa profunda o fez mudar.
Esses tipos de personalidade são facilmente encontráveis em filmes western, aqueles do oeste americano, tipo justiceiro que chega à localidade e estabelece a ordem a partir da visão de seu mundo de justiça. Mas também podem dar origem a filmes ligados à realeza e sua inexpugnável forma de conduzir e controlar leis e povos, ou então originar histórias que vão revelar versões do tipo Patrão, como aquele promotor insaciável que adora vencer uma boa briga no tribunal, mostrando a todos aquela “verdade” que só ele tem.
Aliás, é Interessante notar que com o tipo Patrão fica fácil pensar uma história, e, por conseqüência, um roteiro: construir e estabelecer um tipo briguento e disposto a impor a sua vontade e verdade proporciona condições aparentemente favoráveis para se estabelecer um bom drama e, conseqüentemente, uma progressão narrativa atraente.
Não se trata, entretanto, de uma fórmula de histórias para o tipo, todavia permite ver o padrão de personalidade sob um foco mais próximo da realidade específica do próprio tipo e de seu comportamento. E como comportamento é ação, e ação é personalidade, estamos sim é formulando conceitos mais ou menos homogêneos.
Voltando à análise do tipo, podemos dizer que sua ética, isto é a sua percepção interna da verdade é quase que irrefreável, ao passo que a Moral ou aquilo que externamente pode lhe ser imposto é muito menos significativo, em função de seu ímpeto ou volúpia para referendar a sua posição.
O medo de aniquilação existe e é introjetado na personalidade em forma de um objeto persecutório (Melanie Klein, psicanalista austríaca) e se mostra no Patrão a partir de sua tendência à luxúria, aos exageros materiais de consumo. Quando ele se vê numa fase de parca fartura, a tendência é deprimir-se, voltar-se para dentro, isolar-se e em muitos casos dramatizar a sua situação.
Um bom trabalho ou um ganho extra será uma idealização neste caso, e irá mitigar a angústia sentida. Na sua fantasia inconsciente, há uma tendência a identificação projetiva com justiceiros ou com heróis espertos que obtêm vantagens pela força ou pela esperteza. Em muitos Patrões, há uma tendência inconsciente a autodestruição devido aos exageros e à luxúria, características do tipo.
Dessa forma, o superego (instância da personalidade e objeto internalizado) é muito potente, pois cobra do ego auto-afirmação e força em todas as situações de vida, causando com isso fantasias culposas intensas, levando um Patrão a se punir seja pela somatização de doenças, seja em mergulho fundo nas drogas e/ou em jogos de azar.
Atente para esse tipo em ação: alguém propenso à luta, qualquer coisa que o obrigue a agir no sentido de fazer prevalecer a sua verdade ou defendê-la, levará a disputa pela manutenção do seu status quo, ajustando-se, por fim, a aplicação de uma justiça que lhe seja suprema, benéfica, favorável, ou, em última instância, igualitária.
Existe um perigo na compreensão desse tipo e dos outros em geral, e ele reside na estereotipia. Ninguém é tão exato assim como estamos pintando, o que deve ser visto como padrão de personalidade. Um Patrão age convencido e maniacamente disposto a controlar e mostrar a sua verdade, única e inegociável quando além dela outra se disponha a prevalecer.
No entanto, no Eneagrama, os tipos não são estáticos, mas sim, dinâmicos. Eles são condutores de emoções e desejos e estão sempre em intercâmbio com outros tipos. Dessa forma, o tipo Patrão aqui explicado pode ter outras variantes.
O importante nesse estudo e eventual aproveitamento por parte do leitor é saber que um tipo de personalidade ou caráter é sempre coerente com o seu próprio padrão interno, como atenção e estilo intuitivo. E isso, por si só, colide com as formas de estereótipos para as quais podemos nos sentir atraídos.
O que vale mesmo é ver o padrão como um padrão. Um sistema mental que organiza e conserva uma coerência interna de pensamentos, emoções e atitudes. De acordo com os obstáculos que tal tipo terá de enfrentar no mundo, é que determinará sua forma única de agir e reagir frente às circunstâncias da vida.
Em relação ao tipo Patrão nas histórias, ele pode simbolizar ainda uma força a ser vencida, por exemplo. Há outras tantas combinações e funções para o tipo, mas tudo depende da história a ser contada.
Recapitulando então o tipo em destaque: age por instinto, briguento, controlador e solucionador. Gosta de impor suas vontades e verdades, por isso, não raro, ganha antipatias. Mas também sabe manipular pessoas quando aquilo que está no raio de seu interesse pessoal pode perigar. Um tipo como esse tem muito potencial dramático, se for usado em histórias, pode proporcionar amplas condições narrativas para levá-lo a uma trajetória de herói.
Podemos resumir dizendo que um tipo que gosta de brigar e controlar os outros e a coisas, defendendo sua posição e verdade, seguramente poderá se constituir num belo exemplar de personagem de ficção, na medida em que ele se defronta com oposições à sua posição e verdade, o que, para todos os efeitos, garantem a dose necessária de conflito.